segunda-feira, 8 de junho de 2009

[Dignidade]

[é viver de peito aberto]

On va à l'école



Uma escola onde o chão é de terra batida, e o sol espreita por uma grande fresta que em tempos foi parte da parede. Onde as osgas se estiram à luz numa preguiça lenta.
Onde em cada sala se sentencia "Travail+Discipline=Réussite", e onde as normas de conduta se escrevem em papéis afixados na parede.

Uma escola onde os meninos trazem a terra nos pés [e por isso não precisam de limpar os sapatos à porta], e cheiram a sândalo, e se vestem de arco-íris.
Onde só são admitidos os que têm um caderno e uma caneta, condição sine qua non para a inscrição [ou a diferença que um simples caderno pode fazer na vida de alguém].

Meninos de sorriso fácil, a desenhar a caligrafia cuidada no valioso, bem poupado caderno, que lhes permite estar nesta elite que repete que os segredos para o sucesso são o trabalho e a disciplina.
A desenhar o mapa tricolor dessa terra à qual, como ninguém, podem chamar - Afrique, mon Afrique.


domingo, 7 de junho de 2009

As liberdades

O caminho de Réfane para o centro de saúde de Mbambaye é curto, uns 15 minutos de autocarro, que podem ser mais ou menos demorados dependendo da hipótese de atolamento na areia e respectiva recuperação. Pelo caminho a paisagem é desértica, salpicada por árvores de grande porte e muitos embondeiros - as "árvores ao contrário" de Mia Couto, a lembrar o momento de regresso do Principezinho de Saint-Exupéry.



As pessoas, principalmente crianças, juntaram-se à nossa chegada à volta do Centro de Saúde em Mbambaye, que está quase pronto, e onde fomos ajudar a terminar a pintura [aqui não há qualquer tipo de peneiras de (de)formação, ajuda-se no que é preciso, e descobrem-se talentos escondidos :)].


O professor da escola local aproxima-se num francês fluente, e convida-nos a visitar a escolinha amanhã, depois do trabalho. Tem 20 e poucos anos, um ar simples e olhar vivaz, fala espanhol, árabe, wolof, inglês e francês. Tem uma licença, arranjada a custo, para fazer formação na Europa durante 2 meses. Para tal, precisa de um documento de algum europeu que se responsabilize por ele no país de acolhimento e assegure o seu regresso, ao país de origem, A esperança não é a de dois meses, mas sim a de uma porta aberta sem regresso, uma fresta da legalidade.
A partida é a esperança, o el dorado com o qual é tão fácil empatizar, o sonho de uma vida diferente, longe deste deserto e de todas as oportunidades que não existem. Longe também destas crianças, para as quais representa a única oportunidade, num raio de muitos quilómetros, para aprender o básico.

Questões tão complexas.
[Sobre as liberdades que terminam onde outras começam; onde os sonhos justificam os meios, quaisquer meios; onde a nossa importância relativa para um comunidade não é compatível com as ambições - que jazem, como uma miragem, tão longe daqui].

As liberdades - essas mesmo, às quais uma declaração sem terra nos deu direito, são tão únicas como a nossa própria condição.

[Todos iguais. No espaço do nosso coração, na paixão do nosso olhar, no amplexo do nosso abraço. Talvez, ou nem aí. ]


Mas as opções, os horizontes, esses são, infelizmente, definitivamente, tão fugazes como a nossa própria condição.

Momentos assim

Momentos assim - tão longe de tudo, tão perto de nós.
Para nos lembrar que em pequenos instantes da nossa vida - raros, instantâneos, fugazes - não há outra opção senão sermos exactamente quem queremos ser, e parece quase incrível que não seja sempre assim.
Momentos de coração cheio, sem espaço para mágoa, para remorso, para desilusão - momentos para dar e gastar cada milímetro de ilusão, não cedendo a mais pequena margem do sonho.

Em que a realidade e nós próprios não limitamos as nossas expectativas - e, pelo contrário, as engrandecemos de uma forma surpreendente.

Para guardar.
Um dia apenas, uns minutos assim, são o suficiente para relembrar o regresso a casa.

sábado, 6 de junho de 2009

Mbambaye


O dia começa com a ida ao centro de Mbambaye, para comprar o pão da manhã. Mbambaye é uma aldeia no interior do Senegal, numa região desértica. No caminho até ao centro passamos por várias casas, agrupadas em pequenos bairros. Tradicionalmente, as pessoas vivem em pequenos grupos de palhotas, que rodeiam por uma vedação de palha ou por um muro de cimento. Estes grupos não têm necessariamente laços de sangue (embora incluam frequentemente as várias mulheres permitidas a um homem muçulmano), e as crianças são educadas conjuntamente, como se fossem todos irmãos entre si.


Em seguida, temos um tempo livre durante a manhã, que aproveitamos para passear no mercado de Touba Toul. Os mercados são sempre um dos meus passeios preferidos, fora do meu país, porque me dão a sensação de conseguir perceber mais genuinamente os hábitos das pessoas, o que comem, o que compram e vendem - e além do mais são sempre uma boa oportunidade para falar e tentar perceber as suas vidas. No mercado de Touba Toul vende-se um pouco de tudo, animais (cabras, ovelhas, cavalos e burros), legumes e frutas (com as características mangas de tamanhos e feitios vários), peixe seco, farinhas, medicamentos avulsos, ferramentas de trabalho, tecidos multicolores.

Depois do inevitável descanso depois do almoço, em que as temperaturas altas dificilmente permitem qualquer actividade humana, voltamos a Mbambaye. O objectivo primeiro desta missão é a construção de um centro de saúde nesta aldeia, para o qual contribuímos com um donativo, e que será simbolicamente pintado durante os próximos dias. De resto, toda a ajuda é bem vinda, consoante a formação de cada um dos elementos deste novo grupo tão heterogéneo - e nós voluntariamo-nos para fazer consultas e sessões de educação para a saúde, que nos parece ser o contributo mais interessante e útil na nossa área.


A população da aldeia recebe-nos neste primeiro dia numa cerimónia de danças senegalesas tradicionais, onde os meninos se sentam em grupos de 2 e 3 no nosso colo (quantos couberem!) e as mulheres nos pegam pela mão para dançar. Toubab (branco) não tem a ginga no sangue, e faz o que pode! :) A música nasce no sangue desta gente, pequeninos, 2 ou 3 anitos, e dançam como gente grande ao lado das mães. Mais ainda - ainda sem caminhar, amarrados às costas das mamãs, elas dançam sem parar, e sem que os bebés acordem!

A alegria nasce-lhes de uma forma tão inata - tão descomplicada, como se fosse preciso tão pouco para ser feliz. E, se calhar, é mesmo.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Breaking dawn


Depois de 4 horas de voo, eis-nos chegados a Dakar, onde o vento quente da noite faz esquecer que passa pouco da uma da madrugada. Dakar, vista aérea, é tão diferente de Bissau. A minha primeira aterragem subsahariana é daquelas memórias que dificilmente esquecerei - nariz colado ao vidro do avião, um nervoso miudinho pela aterragem que se antecipa num solo que não se vê, escuridão sobre escuridão em Bissau, e ao fundo apenas as luzes do aeroporto. Dakar, pelo contrário, é já cidade vista do ar, com luz eléctrica a desenhar trilhos. O nervoso miudinho, esse, é mais ténue - quase subtil - num vôo que desta vez é compartilhado com outros 11 companheiros de aventura.

Seguimos para Mbambaye, a 150 kms de Dakar, aproximadamente 4 horas de viagem de autocarro. A primeira parte da viagem decorre tranquilamente, numa estrada de alcatrão em cujas margens nos saúdam vários nomes familiares: Philip Morris, Orange, a incontornável Maggi nos países em vias de desenvolvimento (onde com um cubo de caldo se disfarça a carne que não há). A viagem continua no terreno desértico que nos acompanhará até ao final da missão, até chegar ao acampamento.

O nascer do dia revela-nos o acampamento onde passaremos estes dias: tendas duplas, um espaço para as refeições, com cadeiras e mesas para o serão, uma rede, colchões para descansar nas horas de calor - onde, com sorte, teremos histórias para compartilhar.


O cansaço da viagem embala-nos devagarinho para as poucas horas de sono de hoje. Com este vento genesíaco sobre as tendas, e os cânticos muçulmanos ao longe, é tão fácil adormecer.
Amanhã começa a aventura.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Senegal

África minha, quase um ano depois.
O encanto por esta terra é o mesmo, a vontade de partir, maior.
A momentos da partida, o medo está lá, onde sempre esteve, a brincar às escondidas com esta expectativa maior de regressar à terra da terra vermelha, da bola de fogo no horizonte, dos sorrisos fáceis e gratuitos, que nos fazem ter vergonha por tudo o que temos não ser sempre suficiente para nos fazer felizes.

Nesta terra esquece-se o tempo, esquece-se a futilidade, a arrogância, a insatisfação que os dias nos fizeram acreditar serem nossas. Nesta terra, só há margem para o agradecimento pelo pouco que nos falta - e pelo tanto que nos sobeja.

Por isso, voltar aqui é sempre um regresso às origens. Voltar a nós próprios, recordar o essencial, sentir que os nossos gestos podem fazer a diferença - mesmo que pequenina, mesmo que incógnita. Saber que os sonhos estão no seu lugar exacto, e que enquanto assim for será sempre fácil sermos fiéis a nós próprios.

África minha, quase um ano depois.
O encanto é o mesmo. E foi impossível resistir ao regresso.


Senegal | 2009

quarta-feira, 27 de maio de 2009


Life
is
precious.