quinta-feira, 14 de agosto de 2008

[Para levar]

A liberdade imensa da chegada a Bissau na mais plena escuridão, com tanta coisa pela frente.
A ironia dos caminhos traçados, onde nos atalhos se encontra o verdadeiro destino.
A imprevisibilidade dos planos. As surpresas.
As portas abertas ao vento da mudança e do imprevisto.


Os sorrisos imensos que trocámos, de súbito todos iguais.
As pequenas mãos que se prendem e nos prendem para sempre.
O abraço onde cabe toda a nossa redenção.
O nosso contributo, uma gota ínfima.


Os encontros inesperados. Os encontros que parecem escritos antes de nós os sabermos.
As mãos que se estendem como as nossas.
As palavras que dizemos na mesma voz.
As vidas que se dão plenas sem sombra de arrependimento.


O pôr do sol em África - incomparável, único, inesquecível.
O verde intenso em todo o lado e dentro de nós.
Os cajueiros e as palmeiras enormes pela beira da estrada.
O cheiro desta terra primeira, anterior ao tempo.
As noites embaladas pelo canto das rãs, pela chuva e pela trovoada.



O caos de Bissau. Toca-tocas com tanta gente quanta cabe.
As cores do mercado do Bandim. Mamãs vestidas com "esperas".
Caldo de chabéu. Maaza de goiaba. Mangos.
As viagens feitas à chuva e ao riso na parte de trás de carrinha.
As boleias pelo caminho. "Branco pelélé" e "pretumbau" no mesmo riso.
A descoberta dos outros. A descoberta de nós.
A descoberta de todo um mundo para além do nosso.

Desejar ser melhor. Trabalhar em ser melhor.
Caminhar por um sonho. Cumprir.

Pertencer. Aqui.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Últimas histórias da Guiné


Ontem foi um bom dia :)
De manhã, estive a preparar uma sessão de educação para a saúde sobre cólera, com o Wagner, um enfermeiro brasileiro que chegou cá há pouco tempo. Tenho pena que nos tenhamos desencontrado um bocado, porque ele chegou já na minha segunda semana, e parece uma pessoa impecável.


À tarde fui com a missão do "Mundo a Sorrir" para uma missão evangélica onde eles estavam a fazer tratamento dentário. Cheguei lá e basicamente disse que queria trabalhar :) Foi muito giro, são estes momentos que me fazem acreditar que fiz bem em vir, e que justificam todas as coisas menos fáceis que uma aventura destas implica. Durante a tarde vi para cima de 50 meninos, e os recursos da farmácia da missão eram bastante limitados, mas entre antibióticos e analgésicos que tinham sido deixados cá por outras equipas de voluntários, o essencial havia. Cheguei a casa tão cansada e tão feliz, só neste tipo de trabalho é que me sinto verdadeiramente útil - e as pessoas agradecem tanto, é tão gratificante que é impossível não querer repetir a experiência.




Hoje de manhã fui com o Wagner a Prábis, uma tabanca aqui perto, fazer formação à população sobre cólera (coisas básicas como prevenção da transmissão, reconhecimento dos sintomas, cuidados de saneamento, etc). As pessoas que foram à formação eram bastante interessadas e fizeram muitas perguntas mas, quando lhes dizemos que eles têm um papel importante porque têm que transmitir aos outros, respondem que é muito complicado - aqui acreditar em vírus e bactérias é mesmo uma questão de fé, e é muito mais comum crer que a cólera foi um feitiço que só o imã pode curar do que perceber que na água límpida há vibrio cholerae.


Faltam poucas horas para deixar Bissau.
Tenho saudades da minha casa e do meu conforto, das minhas pessoas e da minha vida, mas ainda assim fica a sensação que há tanto por fazer - e pior ainda, que é tão complicado fazê-lo. Do conforto do meu canto e do meu país, era impossível não ter a atitude - que agora reconheço como um bocadinho arrogante - de que é fácil mudar o mundo, esquecendo tanta gente que o tentou e tenta, deparando-se diariamente com um ciclo vicioso que não pode ser movido apenas pela boa-fé. Sem dúvida que me apaixonei por este calor primeiro das gentes, que são encantadoras, pela terra vermelha, mas levo comigo também um certo desencanto, ou realismo, pela crueza impossível destas vidas.
Saio daqui com a sensação que o trabalho de voluntário pode ser uma coisa muito bonita, muito gratificante, mas que é também uma prova de força à nossa estabilidade emocional, um grande abanão maior do que qualquer outra vivência que tenha tido, uma maneira de nos pôr a olhar pelos olhos de pessoas completamente diferentes de nós.
Saio também com a sensação que vou dar um valor completamente diferente a tantas coisas que tomei como adquiridas no meu país - a liberdade, a organização política, a paz, que com as suas imperfeições todas parecem-me a esta luz quase perfeitas.

Mas acima de tudo, saio com a certeza de que não esquecerei nunca esta África com que sonhei durante tantos anos, desenhada nas palavras do meu avô, e que agora sinto também um pouco minha.


segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Ondame

Uma das coisas mais giras que tem uma experiência de voluntariado é, na minha opinião, o facto de estarmos constantemente a conhecer novas pessoas - e dessa forma, os dias são sempre bastante imprevisíveis.

Ontem fomos à missa na Catedral de Bissau - que experiência incrível, com rezas em forma de cânticos. No final, uma senhora veio atrás de mim a perguntar se era médica, porque me tinha visto com o colete da organização. Ficamos a falar e descobri que ela também é médica e está cá com uma missão da Fundação João XXIII, e convidou-me a ver a missão deles na maternidade de Ondame.


Desse modo, partimos hoje novamente numa nova incursão ao interior da Guiné-Bissau. De novo, tabancas (aldeias) paupérrimas, gente muito acolhedora e paisagens lindíssimas. Todo o caminho é numa estrada de terra batida rodeada por cajueiros, pés de manga e palmeiras, através das quais se cruzam todo o tipo de animais, com as crianças sempre em alvoroço a acenar e a chamar "branco pelélé" :)


Na aldeia, estiveram a entregar mantimentos a algumas famílias. Numa delas, estavam a preparar o almoço, que era água fervida! Apenas água fervida, sem mais nada! É incrível como estas populações são pobres. Deixaram-lhes ficar arroz, caldo e alguns enlatados, mas fica sempre a sensação de que é uma gota no oceano, uma solução temporária, a possível... Depois, fomos visitar a maternidade que, para minha surpresa, funciona relativamente bem! Tudo suportado por voluntários!


E agora, de volta a Bissau... Viemos jantar de novo à Avó Berta, que é o ponto de encontro da cidade. Mais do que a comida boa, é um sítio bom para encontrar e reencontrar gente, um sítio onde param quase todos os voluntários. Estive com o Xavi e a Paula, que já não via quase desde que cheguei, e com o Xavier. Estivemos lá todos a falar até há pouco, e agora que vou dá-me pena, agora que já conheço pessoas, e que isto quase parecia ser o começo de muito mais... e acho que sem dúvida um dia vou voltar.

sábado, 9 de agosto de 2008

Pôr do sol em Bissau

Dia de descanso


O plano para hoje era irmos até à tabanca de Caió fazer consulta aos meninos de lá. Mas correm alguns rumores de que a situação política não está muito estável para viagens, e aconselharam-nos a ficar por cá este fim de semana. Normalmente (dizem) , havendo problemas são coisas direccionadas e sem efeitos colaterais, mas apesar de tudo há sempre o risco de corte de estradas e comunicações.

Por isso - e porque ao fim desta semana que foi um bocado intensiva, sabe mesmo bem descansar um bocadinho - fomos relaxar para a piscina de um hotel aqui próximo.
(imaginam que isto é grátis durante a semana?)

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Quinhamel


Hoje aproveitamos a manhã para manhã para ir a Quinhamel, uma aldeia aqui perto onde fazem tecidos artesanais típicos guineenses, e que é uma loja de preço justo - as pessoas que trabalham lá tem parte do horário dedicado a formação e estudo por dia, e depois voltam para lá o resto do tempo. Foi giro porque mais uma vez deu para fazer uma viagem até às zonas mais rurais, que na minha opinião são bem mais bonitas de que Bissau propriamente dita.

Depois aproveitamos e ainda viemos a Bissau almoçar à pensão da Avó Berta (que é imensamente simpática, e daí a sua popularidade em Bissau, quer entre gineenses, quer entre voluntários!). Finalmente conheci o pai da Joana, que está também de partida hoje para Portugal. Esteve a mostrar-nos as análises que tem feito às águas aqui em Bissau e realmente é assustadora a má qualidade e a contaminação, para não falar do crescente surto de cólera que já vai em mais de 1100 doentes. Não é fácil caminhar com os sapatos desta gente, imaginar as condições difíceis com que se debateram e debatem, e que os obriga a aceitar tantas coisas como uma contingência da sua vida...



A tarde foi dedicada novamente ao orfanato Emanuel, onde cada vez gosto mais de ir porque os meninos já nos conhecem, mas o pior foi chegar lá. Rebentou uma daquelas chuvadas tropicais e nós em cima do jipe, já só nos ríamos juntinhos ao vidro a levar com aquela água toda, que apesar de muito agressiva é quentinha :) Para culminar, o nosso jipe ficou atolado no meio do caminho. Nada que não se resolvesse com umas quantas ajudas que prontamente se voluntariaram para tirar os pelélé do meio do lodo :)



E para finalizar, uma grande jantarada! :)

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Mundo a sorrir

Durante a tarde de ontem andei a fazer compras pelo mercado de Bissau, e conheci umas raparigas da associação "Mundo a sorrir", que é uma ONG de médicos dentistas portugueses. Ficamos a falar e adorei o projecto deles, que se aproxima muito do que eu gosto de fazer - estão a dar apoio em várias unidades e também num orfanato aqui perto, onde precisam de médico.

Mal me perguntaram se queria ir jantar e sair com eles, acedi obviamente. Fomos comer a um restaurante português e depois fomos a um café lá perto. Foi mesmo muito giro, porque eles são pessoas com ideias e expectativas que eu compartilho e com quem me senti identificada desde o início.

Hoje de manhã fomos a um orfanato aqui em Bissau, onde pela primeira vez achei que era precisamente isto que eu queria vir fazer, o significado real desta viagem. Vivem lá perto de 100 meninos órfãos, muitíssimo carentes, que agarram a mão à entrada e nunca mais a largam. Só querem brincar e um sorriso... e uns truques de magia também ajudam à festa :)

Trabalhei mais nesta manhã do que em todos os outros dias que estive cá, realmente não há mesmo mãos a medir... ainda ajudamos a desinfectar os quartinhos deles, demos papas e sopas, colo, brincadeiras, ajudamos nas consultas. Foi muitíssimo gratificante, e quero muito voltar lá. Eles são pessoas muito empenhadas, que vieram com um espírito incrível para esta aventura.


Não há dúvida de que está a ser uma experiência inesquecível. Muito enriquecedora, acho que sem dúvida isto vai mudar a minha visão de ver as coisas - é impossível não mudar. Mas também muito, muito mais difícil do que eu julguei. Não foi propriamente uma opção começar pela Guiné, que me diziam ser não ser talvez o melhor sítio para começar - foi basicamente a opção possível. Também não viria novamente sozinha, é muito importante ter um apoio de confiança nestas circunstâncias, mas mais uma vez, também não quis cortar este sonho por causa disso... As diferenças são muitas, é realmente um país tão pobre como eu não tinha noção que pudesse existir e, para mim, viver no nosso cantinho a beira-mar plantado, do qual já tenho tantas saudades, não me deixou ver como é maravilhoso ter segurança nas ruas, estabilidade social e política, um tempo que raramente é agreste, poder ter uma vida normal sem pensar em riscos de doenças fatais ou contagiosas, poder sair à noite sem medo, ter a família e os amigos perto e seguros, ser tudo tão descomplicado. Sinto que cresci sem notar. Tenho medo de algumas coisas, claro, mas tenho esperança que tudo correrá pelo melhor e este trabalho de hoje teve um preço inestimável para mim.

A família e o Manel, lá aguentam as minhas crises de fé, que tudo tem dias, com uma grande paciência :) Preciso de lhes dar uma grande grande beijoca por toda a compreensão e apoio, eu não sei sinceramente se seria capaz de o fazer no caso deles! Nem o que seria da minha força nos momentos mais complicados desta aventura :)

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Biombo


Primeiro estranha-se. Depois entranha-se.
Estranha-se a mosquitada, a confusão, os medos, a pobreza, as ruas esburacadas e poluídas da capital. Depois entranha-se a alegria das pessoas e o seu calor, as paisagens belíssimas, a necessidade de ajuda, a receptividade, o cumprimentar os desconhecidos na rua.

Hoje comecei a primeira parte do meu projecto, que consiste em fazer um ponto da situação da epidemia de cólera na região de Biombo. Em Bissau as coisas estão feias (já contam mais de 900 casos desde o início da epidemia), e a ONU/UNICEF já deixaram cá 4 tendas de apoio no Hospital Central. Fui com a Rita (que é a organizadora de logística) falar com o departamento da ONU em Bissau, porque foram eles que suportaram financeiramente a intervenção de emergência em 2005, na altura do último surto de cólera. O que eles dizem é que aparentemente estão a observar o evoluir do surto, e não acham que para já seja alarmante, apesar de ter havido um aumento de cerca de 100 casos na última semana.


Depois fui com o Braima, o nosso motorista, visitar os vários centros de saúde da região de Biombo (Dorse, Ondame, Quinhamel, Ilondé, Bijimita e Safim). Foi muitíssimo interessante. Para começar foi uma óptima maneira de conhecer a parte mais profunda do país - muitas das estradas eram de terra batida, com água quase a tapar as rodas, verdadeiramente no meio da selva :) Vimos paisagens lindíssimas, e naquelas estradas atravessa-se de tudo, desde porcos, a vacas, aves de todas as cores, galinhas e esquilos (sim, esquilos!). Depois, aldeias em que as casas eram apenas feitas de barro e colmo, com árvores centenárias a funcionarem como banco da paragem dos toca-toca (os transportes públicos da Guiné, que ainda lembram os pão-de-forma). E sempre que paramos nas aldeias é uma animação, porque um carro não é propriamente coisa que passe todos os dias ali, e os meninos vêm todos acenar e falar connosco.




Por outro lado, isto é o tipo de tarefa que permite ter um contacto mais de perto com os doentes, perceber em que condições eles estão a ser vistos e dar uma mãozita nas avaliações clínicas.
Muitos dos centros não tem água potável, no entanto a maioria tem as condições mínimas de tratamento (sais de rehidratação oral ou sistema de soro com lactato de Ringer), e trouxemos uma lista das coisas que faltam para pedirmos directamente na Direcçao Regional de Saúde.


Agora estamos de volta e cansadinhos! Eu vou aproveitar para preparar a minha sessão de educação para a saúde em saúde reprodutiva da próxima semana... Já a Satu e a Rita estão mais entusiasmadas em ensinar-me a dançar kuduro aqui na sede :)


segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Bissau I


Hoje é feriado na Guiné. Na realidade, ontem foi feriado - dia dos mártires do colonialismo-, mas como calhou no domingo, o feriado passa para o dia útil seguinte (o que me parece uma excelente ideia, que podíamos adoptar :p)
Por isso, basicamente aproveitamos para ir às instalaçoes do nosso gabinete e fazer algumas compras. As condições do gabinete são boas e temos também alguns carros para as deslocaçoes. Apesar disso, as deslocaçoes nao sao sempre fáceis, porque as estradas estao completamente destruídas. Bissau deve ter sido em tempos uma cidade lindíssima, tem imensos edifícios muito bonitos da altura do colonialismo, mas também completamente abandonados, e por isso é muito triste ver o estado em que as coisas estao.


A cidade em si tem muitíssima vida, imensa gente, e os guineenses sao bastante calorosos. Mas a diferença para o nosso nível é imensa e um pouco chocante, eu que sempre ando com a máquina atrás perco um bocado a vontade de tirar fotos porque me parece muito mais urgente que nos dediquemos a fazer coisas mais úteis e, sinceramente, nao me sinto muito bem a fazê-lo nestas situaçoes.

Os nossos vizinhos tem vários meninos que já nos descobriram e tem vido meter-se connosco aqui a casa, e que ficam muito contentes com qualquer pequena brincadeira. E nós também, claro :) E agora também aproveitamos para fazer um jantarzinho cá em casa, que esperamos que seja o primeiro de vários - com comidinha portuguesa como a sopa da minha avó e sumo de cabaceira e umas grandes "mangos" de sobremesa :)

Bissau

Cheguei ontem a Bissau à 1h50 da madrugada! É de facto impressionante, por vários motivos. Em primeiro lugar o vento quente e os 28 graus a essa hora da noite, que são deliciosos. Depois, aterrar na mais completa escuridão, não se vêem luzes de casas, nada, apenas as 3 ou 4 luzes do aeroporto - a maioria das casas não tem luz em Bissau, apenas as que tem geradores próprios que, como devem imaginar, são poucas. E, finalmente, o aeroporto Osvaldo Vieira: um edifício com várias portas envidraçadas voltadas para a pista de aterragem, por onde as pessoas circulam alegremente até à pista propriamente dita para receberem os viajantes.

Apesar de tudo, a minha mala chegou sã e salva, e estavam a minha espera o Xavi e a Paula, dois espanhóis mais ou menos da minha idade, que estão a trabalhar cá (ele numa ONG espanhola e ela a colaborar com as Nações Unidas). Moram mesmo ao meu lado e são bastante simpáticos, acho que nos vamos dar bem :)

A minha casinha é óptima, muito melhor do que eu estava à espera. Tem luz e água, e ainda tenho um quarto só para mim com mosquiteiro e tudo. Não me livro mas é do banho de caneco, porque embora teoricamente haja água, às vezes não há...


Choveu torrencialmente esta noite, mas até é bom o som da chuva nos telhados e o vento lá fora a abanar a rede. E agora que o dia começa, ouve-se música africana vinda de vários sítios sempre a tocar, e as palmeiras com o vento...

domingo, 3 de agosto de 2008